2010-06-17

Mulheres a Sul

Mulheres e Escritoras Angolanas 
Heranças e Revisitações 

É fácil fazer corresponder a Angola a própria imagem das suas mulheres, através de uma multiplicidade de retratos que tanto nos sugerem uma dimensão de sacrifício ou heroís mo, associável à vivência da guerra, como a celebração da fertilidade e da beleza. 
Estas hipóteses, que têm a natureza evidente de estereótipos, têm surgido modalizadas, li das e revistas das mais diversas formas na literatura angolana. Os poetas oitocentistas propuseram-nos ima gens convencionais que viviam da exaltação física da mulher e da selecção de códigos de época adaptados ao gosto comum, que valorizava largamente o exotismo. 
Muitos ficcionistas da primeira metade do século XX interessa ram-se por esta mesma perspectiva, tendo mantido a visão da mulher africana próxima de modelos de beleza e compor ta mento de referência europeia ou de afeição a um público que pouco conhecia a realidade africana ou que sobre ela tinha sobretudo representações de dimensão etnocêntrica. 
Autores que vêm escrevendo nos nossos dias propõem-nos uma diversidade de visões, sobre Angola e sobre as suas mulheres, que devem merecer o nosso interesse e atenção, dado que repre sen tam muito do que é a complexidade dos mundos africanos hoje, tanto do ponto de vista social como político ou cultural. 
Retratos como o de Lueji, a rainha que Pepetela exalta como líder de toda uma Nação, fazem-nos compreender que se trata de uma alegoria necessária à revisão de uma parte da História, na procura de um caminho de construção da identidade colectiva e da re vi si ta ção de factos do passado longínquo que assim se convertem em exemplos pro jec tá veis no futuro. 
A intensidade de Boneca, de Arnaldo Santos, representa outro lado deste efeito: ela é uma personagem que nos aproxima do entendimento do realismo angolano, constituindo-se ícone de uma geração e do valor do lugar onde se vive, nasce e morre. Celebrando e confirmando a relação entre o homem e o lugar que habita, reflecte a permanência de um elo entre o indivíduo e a sociedade, entre o indivíduo e a cultura que o gera e de que ele próprio é responsável e transmissor. 
Outros escritores, como Luandino Vieira e Ruy Duarte de Carva lho, vêm dando contributos igualmente significativos para a cons tru ção desta diversidade. 
Podemos encontrar no primeiro uma mulher interventiva, crítica, capaz de exercitar as suas capacidades cívicas com eficácia, mantendo, a par do homem, uma acção correctora da realidade. O próprio facto de a imagem do musseque ser predominante nos textos de Luandino acentua o efeito de pertença a um espaço que é necessariamente de projecção ideológica, entre duas culturas, entre dois mundos que, tendo que conviver, só existem na medida da sua relação de conflito e por essa via exclusiva se constroem simbolicamente. Aí, as mulheres, a par dos homens, exercem o controle das discussões, das diferentes formas de regulação defensiva da existência. 
O segundo autor, de forma muito diversa, faz as figuras de mu lheres participarem de um entendimento da sociedade angolana como um imenso organismo ecológico, em que a nação kwanyama e o universo cosmopolita de Luanda são lados sensí veis de uma mesma realidade. A cultura do outro e a minha tornam-se parte integrante de um percurso que se faz pelos caminhos da constante perquirição existencial e ética. 
O lugar onde a diversidade das imagens sobre a mulher assume um esplendor determinante é o da própria escrita de mulheres. E neste caso é a poesia que melhor retém os elementos neces sá rios ao entendimento de retratos de complexidade profunda. Aqui, as próprias escritoras convertem-se em figuras exemplares de uma História em construção. 
Para Paula Tavares, aquilo que se privilegia é sem dúvida uma complexa forma de adequação entre subjectividade e presença de uma voz colectiva de extracção tradicional. Essa voz subjectiva é eivada de cumplicidades, consciente de uma identidade pensada nos limites da experiência gregária. Os rituais assumem também a importância de marcos existenciais que acentuam o conheci mento dos mundos misteriosos e de segredos de expressão co lec tiva. E a escritora aparenta partilhar em permanência esses segre dos com as mulheres que observa. 
Em Maria Alexandre Dáskalos a poesia aparece como matéria subversiva, a quebrar os nexos entre o tempo da diáspora, imobilizado pela espera, e o encantamento dos mundos familia res. Suspensas, as horas tecem os dias por conquistar e preparam o lugar dos reencontros. Tempo e lugar criam a isotopia das palavras que hão-de revelar a saída do labirinto existencial, pelos gestos que irão finalizar todos os indícios de mudança. O universo feminino desta autora é afinal revisitação das grandes figuras míticas de mulheres da cultura antiga. 
Entre a tradição, através da multiplicidade das suas diversas heranças, e a leitura das mudanças sensíveis, estas escritoras lançam matéria nova sobre as variações dos limites da subjecti vidade na poesia angolana. Com desconcertante optimismo. 
A mulher angolana, à semelhança da mulher de que a literatura fala, acompanha e protagoniza a História que se escreve e rein venta a cada novo texto.